Música para o paladar. O novo jeito de fazer chocolate tem nome: Bean to Bar

Hoje iremos conhecer aqui um novo jeito de fazer chocolate, o chamado Bean to Bar. Mas o que seria isso? O Chocolate Bean to Bar tomou forma como nicho de mercado formatado nos Estados Unidos, pouco antes dos anos 2000. Traduzindo, é uma expressão que significa do grão/semente/amêndoa à barra e representa o negócio do chocolate artesanal desde o cacau.

À frente do Baianí, está a chocolate maker ou a fazedora de chocolate, chef que está no comando de todo o processo de uma produção, Juliana Soares Pinheiro Aquino, 52 anos, filha da região cacaueira no sul da Bahia. Essa deliciosa trajetória, de ódio e amor, música e chocolate, você acompanha agora.

BRP: De onde vem essa sua paixão pelo cacau?

JULIANA: Gostaria de saber responder isso com precisão, mas nunca consegui entender objetivamente, para dizer a verdade. É uma coisa meio que etérea… sou filha da região cacaueira no sul da Bahia e meu pai comprou a fazenda dele em 1973. Só que eu odiava ir para lá até meus 30 anos de idade! Acho que quando veio a crise da Vassoura de Bruxa, peste que assolou a região nos anos 90, e meu pai perdeu tudo entre dinheiro e sonhos, minha atenção passou a ser outra. A fazenda faliu, ficou abandonada por 15 anos e, de repente, alguma energia de lá, daquela natureza linda e exuberante da Mata Atlântica, me chamou para visitas mais frequentes depois que voltei dos Estados Unidos, em 2000. Comecei a ir e me envolver com tudo: escola, situação financeira, estado dos parceiros trabalhadores, cacau… Bom, deu no que deu. Hoje a nossa vida está dividida entre Arataca, município onde está a fazenda, e São Paulo.

BRP: Como é essa relação familiar com o cacau?

JULIANA: Minha família inteira, lados paterno e materno porque eram primos, é tradicional da lavoura cacaueira no sul da Bahia. Meu tio bisavô, Firmino Alves, fundou a cidade de Itabuna que, desde então, é o centro comercial da região. Ele veio de Sergipe atraído por uma proposta do governo com incentivos para a lavoura cacaueira e começou a povoar a região em meados do século XIX. Trouxe amigos sergipanos para ajudá-lo nessa empreitada. Um deles era bisavô do meu marido, Sr. Ramiro Aquino.

BRP: O que levou você a deixar um pouco de lado sua carreira de cantora para se dedicar ao chocolate?

JULIANA: Nem foi “um pouco”. Foi tudo mesmo… Eu nunca deixarei de ser cantora, claro, mas a profissão ficou mesmo de lado. Cantar música popular ou bossa nova no Brasil exige uma capacidade grande de autopromoção em redes sociais, geração de conteúdo diário, capacidade administrativa. Não tenho esse talento… E mesmo muita gente que tem, não consegue deslanchar seu trabalho. Tenho dois discos gravados, mais de 2 milhões de plays no Spotyfi, mais de 40 mil cópias vendidas entre CD físico e músicas digitais no i-Tunes e outros. Você já tinha ouvido falar de Juliana Aquino? Não, né? Pois é, sustentar carreira sem fazer show, hoje em dia, não é mais tão possível. O direito autoral ou conexo não sustenta artista, principalmente no Brasil.

Já no meio do caminho da “desistência da carreira profissional”, a fazenda começou a me chamar, pedir atenção. Uma prima nos alertou que muitos filhos e netos de gerações anteriores estavam voltando para as antigas propriedades abandonadas, depois da crise, e retomando as plantações. Um movimento que começou em 2000, com o aparecimento da possibilidade de agregar valor ao cacau para o mercado de Bean to Bar, chocolate artesanal. Já retomamos o negócio, meu marido, Tuta Aquino, e eu, investindo em cacau de qualidade e o conselho de um amigo e cliente americano nos fez comprar uma máquina chamada melanger, moinho que é a alma do processo de fabricação do chocolate, para testar o progresso das nossas amêndoas no decorrer da implementação do projeto de reformulação da infraestrutura da fazenda para esse cacau especial. Essa máquina foi a responsável pelo Baianí, ou, na verdade, o Greg D’Alessandre, esse nosso amigo americano. No dia em que comecei a processar o chocolate percebi que estava entrando num caminho sem volta. É muito apaixonante, sedutor, feliz! Virou o projeto de meia idade junto com a fazenda.

BRP: Há quanto tempo estão produzindo comercialmente?

JULIANA: O Baianí ainda não está em escala comercial. O processo de desenvolvimento da marca demorou um tanto mais do que imaginávamos. Só na segunda semana de dezembro é que os moldes do chocolate ficaram prontos. Quase perco encomendas de Natal! Encomendas essas que apareceram muito por acaso, numa sessão de degustação de Bean to Bar que promovo em casa de vez em quando. Um dos amigos se encantou pelo sabor diferente do chocolate e, de saída, me encomendou a lembrança de fim de ano para amigos. Nossa, foi uma correria. Então, já houveram vendas, mas a escala comercial ainda aguarda a embalagem definitiva que deve ficar pronta no final de janeiro. Um parto, menina! Mas que parto! Que filho! Que delícia!

Os testes para o produto “Chocolates Baianí”, porém, começaram em dezembro de 2016. Venho desenvolvendo a receita com protocolo de torras, tempo de moagem, maturação e temperagem muito cuidadosamente desde então.

BRP: O que difere a produção de chocolate de vocês para os que compramos, por exemplo, nos supermercados?

JULIANA: Bom, como tudo o que é industrial, o chocolate comum do supermercado percorre um caminho mais curto para que possa ser fabricado em quantidades gigantes. Começa na escolha da matéria-prima que não obedece um padrão de qualidade muito exigente. Cacau do mundo inteiro, boas amêndoas, mas também, os processados de qualquer maneira e, muitas vezes, com doenças, fumaça e mofo, chega aos depósitos das grandes empresas. Empresas essas que são poucas, mas determinam o valor do cacau no mercado de commodities  Muitos são os produtos que elas fabricam. Para receberem o nome de “chocolate” esses produtos precisam ter certa porcentagem de cacau na receita, de acordo com a lei de cada país. No Brasil, no mínimo 25% de cacau, mas já foi 5% um dia, creiam.

O cacau que chega em containers (grande quantidade) já vem com alguma separação e o “ruim” é desodorizado e lavado, depois re-odorizado, sofre a separação da manteiga de cacau (o que no Bean to Bar não acontece pois trabalhamos com a amêndoa integral) onde a manteiga vira subproduto. Parte dela é recolocada no chocolate (e o que faltar para compor a parte de gorduras da receita, geralmente é hidrogenada), outra parte é absorvida pelo mercado de cosméticos ou lubrificantes finos. Concluímos, aí, que é mais fácil comprar MUITO cacau (mesmo porque, para a demanda de chocolate, existe pouco cacau no mundo), desodorizar, re-odorizar com baunilha e  essências nem sempre naturais, para que o odor da má qualidade do cacau seja disfarçado, do que ir de origem em origem numa relação direta com o produtor de cacau, pesquisar a forma de processamento, se dedicar e investir na qualidade da matéria-prima. Bom, isso ficou para o Bean to Bar, que tem essa tarefa como parte da filosofia do chocolate. Além de primar pela qualidade, a observação vai também ao social. O pesquisador de origens de cacau para o Bean to Bar simplesmente não admite trabalho escravo, infantil, más condições do trabalhador nas roças e costuma trabalhar a relação de Fair Trade com seu fornecedor. Acabei de escrever um artigo para o site da Zelia Frangioni, o chocoweb.com.br, falando dessa diferença entre os chocolates. Será publicado em breve.

O processamento do chocolate Bean to Bar é todo feito, “mão na massa”, pelo maker, desde a seleção dos grãos até as barras. Existem fábricas mais equipadas, com mais maquininhas facilitadoras, outras menos, mas todas são basicamente artesanais. Isso significa torra, quebra, separação de cascas, moagem (que leva de 2 a 3 dias e é feita pela melanger na maioria das pequenas fábricas), conchagem (um revolver da massa para volatização de ácidos), temperagem (processo que estabiliza os cristais de gordura do chocolate e o deixam com a textura estável, lisinha, sem brancos por cima nem poroso na massa), moldagem e resfriamento. Depois disso embalamos à mão e vendemos com essa história deliciosa pra contar. O storytelling do Bean to Bar é sempre muito rico porque junta a paixão por fazer o chocolate com a relação com o cacau, as origens da matéria-prima e outros charmes mais… Quando o maker não pode estar todo o tempo com a mão na massa, ele é que desenvolve o protocolo de processamento depois de testar o cacau que compra e passa para os assistentes. Mas a supervisão é intensa.

BRP: Existe uma tendência, hoje, das pessoas consumirem produtos mais artesanais, como percebemos já há algum tempo com as cervejas, acha que esse pensamento também se estende ao chocolate?

JULIANA: Sim, sem dúvida alguma. O brasileiro, hoje, digo em todas as classes sociais e proporcionalmente, tem mais acesso à informação na questão alimentar, cansou do produto industrial somente. O consumidor tem cada vez mais procurado os alternativos: orgânico, local, artesanal, diferente. O chocolate Bean to Bar com grandes porcentagens de cacau, entrou nessa leva de alimentos mais saudáveis (eu diria, menos prejudicial, porque apesar de não ser uma gordura hidrogenada, ainda assim, a manteiga de cacau é gordura, e a média dela em cada amêndoa é de 50%) e vai ficar. Assim como o vinho.

BRP: Como está este  mercado?

JULIANA: Posso passar uma ideia pela experiência de amigos. Fundamos a Associação Bean to Bar Brasil em março de 2017 e todos os sócios tiveram progresso nas vendas. Nada que signifique o enriquecimento repentino de qualquer um deles, mas tanto o volume de vendas quanto a procura por chocolates, cada vez mais intensos (acima de 70%), são observados por todos nós.

BRP: O que acha necessário para evoluir dentro da empresa de vocês?

JULIANA: Todas as empresas têm muito a evoluir, sempre. Parar de pesquisar e estudar novos caminhos é a morte do tesão pelo trabalho. Essa coisa de não mexer em time que está ganhando só serve mesmo para futebol. Temos que mexer sempre e muito. O chocolate é dinâmico, tem campo infinito para a criatividade. Evoluir é meta. Estamos em fase de implementação do negócio. Parte burocrática e de logísticas, mas todo o processo de confecção do chocolate que vai sair foi mega estudado e testado. Teremos basicamente 4 barras diferentes, sendo que uma delas, a de 70% cacau, tem 4 variações: dois terroirs e dois tipos de torra, a ousada, mais intensa e a sutil, mais suave. Depois temos a 70% com raspas de laranja que é a minha favorita, uma outra de chocolate 65% de uma única variedade muito brasileira de cacau, chamada Pará, e a outra de Dark Milk, com uma porcentagem de leite de apenas 7% no total da receita. Isso dá uma cremosidade incrível e não agride os flavors do cacau. O que não tiver muita saída nas vendas vai ganhar um “ôba! ”. Sim, tipo: “ÔBA! Temos que inventar nova receita!”.

BRP: Quais são os planos para daqui alguns anos? Onde pretendem chegar?

JULIANA: Como todo empreendedor, quero poder viver do meu trabalho. Virar milionária com chocolate artesanal é muita pretensão, apesar, obviamente, de nunca ser opção descartada da questão. Quem trabalha com chocolate Bean to Bar sabe que a riqueza dessa escolha está MUITO mais no prazer do que nos lucros.

A meta inicial do Baianí era representar, ser o cartão de visitas do cacau da nossa fazenda, Vale Potumujú. Mas acontece que todos os “testadores oficiais” (amigos e agregados) do chocolate ficaram viciados, literalmente. A cada dia, conquistamos novos fãs, então acredito que o chocolate ganhe vida própria de imediato e faça história no comércio do chocolate Bean to Bar.

BRP: Já se sente realizada com o seu negócio? Qual a sensação de criar um negócio fruto, de certa forma, de uma tradição familiar?

JULIANA: Penso muito sobre isso… Lembro da primeira vez que subi num palco profissionalmente. Era um show da Banda Beijo da qual eu fazia parte como backing vocal de Netinho, cantor líder, e o público era de 14 mil pessoas. Foi um frenezi. A adrenalina era tanta que mal podia me concentrar. Mas eram momentos. Os momentos dos shows, dos ensaios que eram regulares, mas não diários. Hoje acordo todos os dias com essa mesma adrenalina (guardadas as devidas proporções, porque tenho 52 anos e quando entrei na banda beijo tinha 24!). Quero ficar dentro da fábrica e falar de chocolate o dia inteiro. Virei uma chocochata! Hahaha. Não sei se tem a ver com a relação familiar na história do cacau ou se era algum talento escondido só esperando a hora de se mostrar. Que sejam ambos! Amo muito tudo o que faço hoje. Muito! E a realização é vivida todos os dias, em todo o momento em que estou na fábrica ou cuidando dos interesses da Associação Bean to Bar Brasil

Se você ficou na dúvida com alguns dos termos citados na entrevista, segue uma espécie de glossário para ficar por dentro de tudo.

Melanger: moinho de pedra inventado na índia para moer especiarias e adaptado para a obtenção do líquor do cacau, ou seja, cacau moído e liquefeito.

Commodity: termo usado no mercado financeiro para negociar grãos. O milho é um commodity.

Storytelling: ferramenta de marketing que engloba o aspecto emocional na venda do produto quando se expõe os processos de obtenção do produto final.

Flavors: Conjunto de “aromas e sabores” em alimentos e bebidas geralmente processadas artesanalmente.

 

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *